De que maneiras artistas vêm incorporando o uso de tecnologias em criação artística no circuito de Santa Catarina? Entre a fatura manual e as poéticas no digital, como artistas articulam arte e tecnologia em suas investigações? Buscamos apresentar em um festival de arte e tecnologia, produções e investigações recentes de artistas atuantes no estado que vêm operando no tema-suporte-mídia digital e/ou tecnológico em suas produções artísticas e investigações poéticas nos últimos anos.
Já é fato: a contemporaneidade é marcada pelas tecnologias. Se recorremos ao termo investigações poéticas para falar das pesquisas artísticas individuais de cada artista, é para dar visibilidade ao campo de subjetividades do processo artístico de cada artista e como estas se relacionam com a tecnologia. Para muitos, o termo ainda corresponde a uma narrativa de ficção em que se prevê a superação da humanidade pela máquina, tecnologia que é responsável por mudanças imprevisíveis na civilização, de forma incontrolável e irreversível, quase uma ficção científica. Ao definir este termo, Darko Suvin defende que embora haja um estranhamento em toda ficção, são estranhamentos cognitivos, ou seja, são estranhamentos cientificamente possíveis. Sci-Fi para ele se distingue pelo domínio narrativo ou hegemonia de um novum (do latim inovação) ficcional, e que deve estar dentro dos limites da razão científica. Uma impossibilidade que reside no fato de ser possível.
Se por um lado já enxergamos isso como um caminho sem volta, por outro podemos propor modos de atuação da tecnologia como uma aliada no campo de subjetividades, de relações humanas e de criação artística, sem deslegitimar o papel da criatividade, da poética, ou ainda, o papel da arte.
De fato, vivenciamos cada vez mais intensamente nos últimos anos, impulsionados ainda mais a partir do início da pandemia, relações pautadas e mediadas pelo uso de interfaces, por vezes só possíveis por meio delas. Relações interpessoais, sociais e afetivas mediadas por um dispositivo. Se a tecnologia precisava de um empurrão para se instaurar na vida cotidiana das pessoas, a impossibilidade de aglomeração física de pessoas acelerou esse processo. Mas se alteramos nossas relações interpessoais, a culpa não é do dispositivo, mas do que fazemos dele.
O autor chinês Yuk Hui propõe uma inversão no pensamento entre arte e tecnologia: no lugar de focar em como a tecnologia pode alterar os caminhos da arte, propõe-se refletir sobre como a arte pode transformar a vida tecnológica e enriquecer nossa condição contemporânea, propondo diferentes experiências estéticas. Arte-tecnologia passariam a representar um modo de pensamento situado na interseção entre a filosofia e a engenharia, onde a arte se reconecta com a tecnologia, oferecendo-lhe uma forma de poiesis, ou seja, o ato de trazer à luz algo novo, como proposto por Heidegger.
Para repensar os usos da tecnologia, também me baseio no termo tecnodiversidade apresentado pelo mesmo autor, Yuk Hui, uma vez que ele defende que o termo tecnologia não é um fenômeno único e universal, que diferentes sociedades e comunidades políticas podem apresentar manifestações distintas em relação a ela. Ele defende que seria mais realista trabalhar com o conceito de multiplicidade ao pensar a tecnologia, pois, se pensada como uma singularidade, admite-se uma postura universal, e, consequentemente, uma ferramenta política de quem a domina. Se enxergarmos a tecnologia apenas como força produtiva e mecanismo capitalista, não abarcamos o potencial descolonizador que ela carrega.
Pensamos esse festival como forma de repensar o uso das tecnologias nesse mundo pós-pandêmico, assim como as novas narrativas para seus usos e em como a arte pode articular outros caminhos tecnológicos. O festival conta com seminários e oficinas que partem dos temas e propostas apresentadas pelos artistas integrantes das exposições que ocupam todo o espaço do Museu de Arte de Blumenau. Esculturas cinéticas, robótica, impressões de imagens digitais generativas, vídeo-projeções, videoinstalações, projeções mapeadas, instalações interativas e arte biotecnológica são algumas das propostas integrantes que pretendem apresentar o tema da arte-tecnologia em Santa Catarina, sob uma perspectiva histórica de passado-presente-futuro, aliando práticas artísticas que contemplam interlocuções entre a fatura e o digital, o motor e a programação, as novas mídias e o gesto artístico.
A sala Pedro Dantas reúne duas obras que, embora distintas em sua materialidade e abordagem, convergem em temas que se aproximam ao tratar da relação entre arte, tecnologia e sociedade no contexto contemporâneo em Santa Catarina. “Compra-se ventiladores suas gambiarras e histórias” de Maurício Igor e “Fúrias” de Diego de los Campos oferecem perspectivas sobre como a tecnologia, em suas diversas formas, permeia nossa experiência cotidiana e nossa capacidade de resistência e adaptação.
A obra de Maurício Igor nos convida a explorar a techné em sua forma mais imediata: a gambiarra. Tecnologia tão conhecida nas casas e lares brasileiros. Ao coletar ventiladores modificados e suas histórias, o artista tece uma narrativa sobre a engenhosidade que nasce da necessidade, revelando como a tecnologia é reinterpretada e adaptada em contextos de escassez. Esta abordagem ressoa com a história da tecnologia moderna, que muitas vezes avança não apenas através de grandes inovações, mas também por meio de adaptações e soluções improvisadas, uma tecnologia popular.
Já “Fúrias” de Diego de los Campos utiliza motores programados com Arduino para dar vida a esculturas cinéticas de madeira, talhadas à mão pelo próprio artista. Esta obra propõe a tensão entre o orgânico e o mecânico, entre a tradição do entalhe em madeira e a precisão da programação digital. As “Fúrias” em movimento evocam uma reflexão sobre a automação e seu impacto na sociedade, questionando nossa passividade diante das forças tecnológicas e políticas que moldam nosso mundo.
Ambas as obras compartilham uma preocupação com a memória e a história. Enquanto Igor coleta histórias pessoais que revelam um panorama socioeconômico através de objetos cotidianos, de los Campos cria uma alegoria do movimento histórico, com suas esculturas representando a agitação e a instabilidade de nossos tempos. Elas exemplificam como artistas podem atuar como mediadores entre o público e as complexidades tecnológicas, seja através da valorização do conhecimento vernacular ou da criação de sistemas que reorganizam nossa percepção de mundo. Neste contexto, a exposição também levanta questões sobre o ensino e a curadoria de arte tecnológica. Como podemos criar espaços institucionais que acomodem tanto a improvisação criativa quanto a (im)precisão técnica? Como curadores e educadores podem facilitar o diálogo entre estas diferentes abordagens da tecnologia na arte? Esta sala nos convida a refletir sobre estas questões, oferecendo um espaço onde o vento das gambiarras de Maurício Igor e o movimento programado das Fúrias de Diego de los Campos convergem para criar um panorama inicial da intersecção entre arte e tecnologia neste festival.
A Galeria do Papel recebe a série de trabalhos “Estrato – Atravessamentos Gráficos” de J.P.F Borges, e apresenta uma interseção entre as tradições da gravura e as possibilidades da arte generativa. Nesta série Borges desafia a dicotomia entre o analógico e o digital, promovendo um diálogo entre o gesto humano e a precisão algorítmica. Utilizando a computação gráfica e a programação como ferramentas de composição, o artista se vale do acaso e do erro como elementos fundamentais do processo criativo, subvertendo assim as noções convencionais de controle tecnológico.
A obra de Borges propõe reconsiderar o conceito de “novas mídias” na arte contemporânea. Ao fundir a técnica da serigrafia com os processos digitais de geração de imagens, o artista joga com a inovação, que muitas vezes reside na hibridização de métodos, e não necessariamente na adoção exclusiva de tecnologias de ponta.
O processo serigráfico, com suas próprias idiossincrasias e potencial para variações, atua como um contraponto analógico às origens digitais das imagens. Esta tradução do pixel para a tinta também propõe uma materialidade do virtual, como uma mediação sobre a natureza da criação artística em um mundo cada vez mais mediado pela tecnologia.
Da concepção algorítmica à materialização através da serigrafia, a obra de JPF Borges exemplifica como os artistas transitam entre diferentes mídias e metodologias, criando trabalhos que são simultaneamente high-tech e artesanais.
A sala Elke Hering reúne obras de Bill Or, Romeu Silveira e Babel, artistas que investigam as intersecções entre o digital, o urbano e as experiências pessoais e coletivas. Seus trabalhos desdobram-se entre a percepção do real, em relação aos sonhos, às paisagens contemporâneas e aos espaços urbanos. Eles nos lembram que, na era digital, nossas experiências mais pessoais, assim como nossas percepções do mundo, estão cada vez mais mediadas por interfaces, algoritmos e narrativas visuais.
Bill Or, em “sonho.software”, nos convida a uma jornada ao subconsciente, utilizando áudios de fragmentos de sonhos reproduzidos em aparelhos mp3.
Romeu Silveira apresenta três obras que exploram as dimensões públicas e coletivas da experiência digital: “VVVoyeur_redux”, “Unportaits” e “Pós-paisagens”, questionando privacidade, identidade e nossa relação com o espaço geográfico na era digital.
Babel, com “Encheremos essa casa de imagens”, expande essa reflexão para o ambiente urbano. Originalmente concebida para espaços externos, a obra dialoga com os demais artistas da sala, desafiando nossa compreensão da cidade e do conceito de lar. Ao tratar a cidade como uma extensão de nossa identidade, Babel nos leva a refletir sobre as narrativas visuais que moldam nosso ambiente, subvertendo essas imagens e questionando o significado de habitar espaços compartilhados através da arte.
Do sonho à paisagem virtual, do retrato borrado à noção de vigilância, das projeções urbanas às reconfigurações do espaço público, as obras nos propõem a questionar os limites entre o público e o privado, o real e o virtual, o mapeado e o imaginado, o individual e o coletivo. Entre o íntimo e o público, o sonho e a realidade mapeada, os artistas nos convidam a pensar em como as ferramentas digitais e as intervenções artísticas estão redefinindo nossa percepção do mundo exterior, e ao mesmo tempo trazendo à superfície questões íntimas da psique, em realidades individuais e compartilhadas. Em um mundo cada vez mais digitalizado e urbanizado, a arte segue como ferramenta de experimentação, crítica e reimaginação de realidades. Aqui, somos convidados a reconsiderar nossa relação com a tecnologia e o espaço urbano, refletindo sobre como eles moldam nossa compreensão de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.
A Sala Roy Kellermann apresenta uma curadoria de obras de artistas cujas práticas extrapolam as demarcações convencionais entre disciplinas, propondo uma investigação crítica das intersecções entre arte, ciência, tecnologia e natureza. Esta exposição configura-se como um espaço laboratorial de pesquisa artística, no qual as concepções tradicionais de paisagem, fronteira, ciência e natureza são submetidas a um processo de ressignificação através de abordagens tecnológicas e poéticas contemporâneas. A proposta curatorial articula-se como um campo de experimentação e reflexão, onde os paradigmas estabelecidos são desafiados e reconfigurados, propondo um diálogo interdisciplinar que questiona as fronteiras epistemológicas e ontológicas entre estes domínios do conhecimento.
Entre imagem e som, a obra de Fran Favero propõe uma experiência multissensorial que ultrapassa as delimitações geográficas e culturais convencionais, reavaliando noções de fronteira e identidade. A artista articula uma narrativa que desafia as percepções estabelecidas sobre espaço e pertencimento, instigando uma reflexão sobre a fluidez das construções socioculturais em um contexto globalizado. Suas obras “Evaporação”, “Mergulho”, “Rádio Triangulação”, “Triangulação” e “Com lágrimas molho a tua velha casa” exploram as tensões e fluidez das regiões fronteiriças, particularmente na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. Através de vídeos, instalações sonoras e realidade virtual, Favero cria um diálogo poético sobre identidade, memória e as transformações físicas e culturais causadas por intervenções humanas na paisagem.
Osmar Domingos, com seu “Ensaio para ficção científica latino-americana”, propõe uma visão alternativa das ciências biológicas, desafiando as narrativas dominantes da ficção científica anglofônica. Sua instalação multimídia, que inclui esculturas cinéticas e robóticas, propõe um ecossistema especulativo que reflete sobre as possibilidades de um imaginário tecnológico enraizado nas culturas e realidades latino-americanas.
Jonas Esteves apresenta duas obras que transitam entre arte, ciência e espiritualidade. “O que nos move” explora a interação entre plantas e energias sutis, transformando a galeria em um laboratório experimental onde o crescimento vegetal é influenciado por frequências luminosas e sonoras associadas aos chakras. Já “Máquina Sensível” investiga a relação entre corpos humanos, tecnologia vestível e paisagens afetivas, questionando nossa crescente dependência digital.
Pedro Gottardi, com “Força austera numa tentativa utópica”, cria um diálogo visual entre o natural e o artificial. Justapondo um galho de árvore encontrado com sua réplica em impressão 3D, a obra levanta questões sobre sustentabilidade, preservação e os limites da intervenção tecnológica na natureza.
Esta sala propõe um convite ao público para repensar as relações entre humano e natureza, tecnologia e tradição, local e global. As obras apresentadas não apenas repensam as fronteiras estabelecidas, mas propõem novos modos de percepção e interação com o mundo ao nosso redor. Ao transformar a galeria em um espaço de experimentação e reflexão, a exposição destaca o papel dos artistas como mediadores entre diferentes campos do conhecimento, oferecendo visões alternativas e críticas sobre nosso futuro compartilhado. Neste laboratório artístico, as fronteiras entre disciplinas se dissolvem, convidando-nos a explorar um terreno fértil onde a criatividade, a inovação tecnológica e a consciência ecológica convergem para imaginar novos futuros possíveis.
A sala Alberto Luz apresenta obras de Bruno Bez e Leandro Vigas, artistas que transitam entre a videoarte, a arte sonora, e inteligência artificial como meio de produção artística para questionar as fronteiras entre o natural e o digital, o cósmico e o microscópico, o tangível e o etéreo. Através de suas criações, estes artistas propõem uma reflexão sobre a condição humana na era da informação digital, explorando as complexidades da percepção, da identidade e da consciência.
As séries de Bez, “Cascades” e “Consciousness – Mastering the Mindstream”, oferecem uma experimentação fenomenológica da intersecção entre memória, natureza e tecnologia digital. Suas composições, caracterizadas por estruturas cristalinas geradas por IA, partem de metáforas visuais para estados de consciência, propondo uma dialética entre serenidade e caos cognitivo. A obra de Bez pode ser interpretada como uma investigação da psique humana na era digital, articulando visualmente os processos de transformação interior e evolução da consciência.
Em contraposição e complemento, “Exoplanets” de Vigas apresenta uma investigação das relações entre o macrocósmico e o microcósmico. Esta obra repensa paradigmas convencionais de escala e percepção, justapondo representações de corpos celestes extrassolares com imagens evocativas de estruturas celulares. Tal justaposição reflete sobre a própria posição do ser humano no universo e as interconexões entre diferentes níveis de existência.
Coletivamente, estas obras constituem um ambiente imersivo que propõe uma análise das intersecções entre tecnologia digital, consciência humana e fenômenos naturais, questionando as demarcações tradicionais entre o orgânico e o sintético, o efêmero e o perene, o fluido e o estruturado.
Esta exposição não se limita a uma mera demonstração das potencialidades da IA como meio artístico, mas se propõe como um espaço de reflexão sobre a condição humana em um universo onde as fronteiras entre o natural e o artificial, o próximo e o distante, se tornam progressivamente indistintas. Em suma, esta exposição pretende oferecer uma plataforma para o exame crítico das transformações ontológicas e epistemológicas provocadas pela intersecção da tecnologia digital com a experiência humana, convidando a uma reavaliação de nossa compreensão da realidade, da consciência e da própria natureza da existência no século XXI.