Série Ressonâncias | Notas de Programa – Clara e Robert Schumann: Paixão e Criatividade

Notas de Programa
Clara e Robert Schumann: Paixão e Criatividade
Clara Wieck Schumann (1819-1896)
Trio com piano em Sol menor, Opus 17 (1846)
Allegro moderato
Scherzo: Tempo di Menuetto
Andante
Allegretto
Robert Schumann (1810-1856)
Quinteto para piano e cordas em Mi bemol maior, Opus 44 (1842)
Allegro brillante
In Modo d’uma Marcia. Un poco largamente
Scherzo. Molto vivace – Trio I – Trio II
Allegro ma non troppo
Num mundo como o de hoje, onde impera o realismo mais descarnado, a curiosidade de ver detalhes minúsculos e insignificantes da vida de pessoas desconhecidas e carentes de qualquer interesse, onde o acesso à informação é instantâneo e sem esforço, num mundo assim, o lugar para a metáfora, para a contemplação e o devaneio poético, tem ficado restrito no tempo e no espaço da vida cotidiana. Queremos histórias que nos emocionem e nos inspirem, que voem acima da vida prosaica para mostrar-nos outros caminhos, e, ao mesmo tempo, quando elas chegam, desconfiamos com sarcasmo de sua verossimilitude, e queremos reduzi-las a meras fórmulas, para comprovar a sua eficácia. Como se uma história precisasse ser verdadeira para exercer seu efeito.
Tal acontece com o amor mais célebre da história da música. Até algum tempo atrás ainda se apresentava como o idílio da perfeita consumação romântica de um casal que compartilhava os ideais e devaneios artísticos, e cujo amor perseverou acima das dificuldades surgidas desde o mesmo início dessa história. Visões mais recentes tem querido mostrar aspectos menos encantadores da relação, as mágoas, os anelos não concretizados, as mazelas da vida cotidiana.
Em cartas de Robert a Clara, ele se regozija imaginando sua futura vida juntos, fazendo música, estudando contraponto em casa, mostrando-se as composições, sendo uma inspiração um para o outro. Na vida real, Clara teria várias crianças pela casa, estaria grávida frequentemente, não poderia estudar o piano –e estamos falando de uma grande concertista– enquanto seu esposo estivesse trabalhando em alguma composição, para não o distrair, e ainda teria que ser o suporte emocional e artístico dele, que anos mais tarde começaria dar mostra de perda da cordura. Poderíamos ver mais e mais detalhes dessa realidade que não era exatamente o sonho que vislumbravam antes de consumar seu amor, mas eis que a imagem do idílio é mais bela, mais duradoura, mais inspiradora, para nós e para eles, como de fato demonstram as obras desses anos!
Quando escutamos uma obra de arte, estamos num momento de realidade incontestável, e ao mesmo tempo, nas portas do mundo do devaneio e dos sonhos; por que não nos deixarmos encantar mais uma vez por esse mundo de sublime fantasia que provavelmente foi tecida com os laços do amor desses seres que buscaram se unir para compartilhar um elevado ideal?
O trio de Clara
Clara compõe seu trio com piano em 1846, e resultará a obra melhor acabada e mais importante de sua produção. Excetuando o concerto para piano que escrevera entre os treze e os dezesseis anos, para exibir suas qualidades de concertista, o trio é primeira obra que utiliza mais instrumentos que o piano. Ela escreveu no seu diário: “não há nada maior do que a alegria de compor algo e depois poder escutá-lo”. Pensava que essa obra estava bem conseguida. E de fato, se trata de uma obra sólida, com belas ideias musicais em todos os movimentos, trabalhadas com destreza. Possivelmente, a eleição da tonalidade, Sol menor –que havia escolhido também para sua sonata para piano, a única obra anterior estruturada em vários movimentos– respondia à seriedade das intenções. Um sólido primeiro movimento em forma sonata concatena as belas ideias com um firme domínio da forma. No segundo movimento, Clara escreve um scherzo em tempo di menuetto, de maneira mais inocente do que irônica. No movimento lento temos um romance encantador, tingido de uma suave melancolia, e nos recorda aos irmãos Mendelssohn. De fato, Clara havia pensado dedicar seu trio a Fanny Mendelssohn, a quem admirava muito, mas ela faleceu antes da obra ser publicada e a dedicatória não se efetivou. No finale, Clara faz gala de seu domínio do contraponto, produto do tempo de seus estudos da matéria em conjunto com seu esposo, apresentando um belo e efetivo fugato no meio do movimento. A coda está muito bem conseguida e leva a feliz término uma obra encantadora.
O quinteto de Robert
Schumann dedicou seu quinteto a sua esposa Clara. Nos primeiros anos de matrimonio a veia criadora de Robert se expandiu notavelmente. Clara tinha lhe recomendado que não se dedicasse a compor apenas para o piano, mas que escrevesse música de câmara e para orquestra, para consolidar a reputação como um dos importantes compositores da época. Eis o que Robert fez, escrevendo concertos, aberturas e sinfonias. Nesses primeiros anos felizes, excelentes canções e música de câmara viram a luz, e entre elas, o célebre quinteto com piano, um dos mais apreciados de toda a história da música.
Poucas são as obras que nos primeiríssimos compassos conseguem expressar um tipo de felicidade e regozijo que, talvez afortunadamente, não poderia ser manifestado em palavras.
Como corresponde à claridade da forma sonata, chega o segundo tema, mas aqui acontece algo mágico: mesmo se tivermos o firme propósito de escutar esta música analiticamente, Schumann nos invade com uma poesia capaz de vencer-nos instantaneamente sem apresentarmos nenhuma oposição. Isto é inspiração!
O segundo movimento, in modo d’una marcia (em modo de uma marcha) muda completamente a expressão: se de uma marcha se trata, só pode ser fúnebre, com seu devido canto consolatório e com a explosão de sonoridade quando o sentimento é demasiado para continuar contido. Um dos movimentos lentos mais notáveis de todo o romantismo.
O scherzo retoma o caráter do primeiro movimento, mas propõe um impulso inquieto que permeia toda a peça. O finale é esplêndido, habilmente Schumann cria um tema de fuga que só se revelará como tal mais adiante no movimento, coroando uma das grandes obras primas da música do século XIX.
O programa de hoje nos convida a refletir sobre o poder do amor como meio de transformação ideal, que, sem esquecer da realidade que a vida apresenta no dia a dia, é capaz de dar-lhe novos significados e sublimá-la, porque, afinal de contas, estas obras nos mostram que os sonhos podem se tornar realidade.