Série Ressonâncias: Piazzolla – Programa e notas

Programa
Por una Cabeza – Carlos Gardel – 1935
La Cumparsita – Gerardo Matos Rodríguez
El Choclo – Aníbal Villoldo
Tango de fato?
Trenzas – Armando Pontier – 1945
Danzarín – Julian Plaza – 1958?
Romance de Barrio – Aníbal Troilo – 1947
Criolla – Luis Gianneo
Tango – Issak Albeniz
Composições de Astor Piazzola:
Oblivion
Fuga y Misterio
Libertango
Four For Tango
La Muerte del Angel
Milonga en Re
Adiós Nonino
Notas de Programa
Tango de fato?
Normalmente, pensamos através de associações de ideias e comparações vinculadas a imagens que ilustram a clareiam os conceitos que tentamos compreender. Na maioria dos casos, estas imagens surgem de maneira espontânea e imediata, sem precisarmos evoca-las. Por exemplo, se escutamos a palavra ‘neve’, instantaneamente pensamos na cor branca e a associamos com o frio, quiçá antes mesmo de que o conceito total tenha sido enunciado. Antes de contextualizar num árduo e solitário caminho na intempérie ou no gentil abrigo de uma casa aquecida na qual tomamos uma ceia enquanto contemplamos a neve caindo lá fora.
Conforme o enunciado acontece, diversas possibilidades de nuances vão mudando; contudo, dificilmente as nossas associações primárias são modificadas.
Quando escutamos a palavra ‘tango’, quiçá a primeira associação de uma grande maioria das pessoas seja o país Argentina e mais precisamente a cidade de Buenos Aires e logo alguma imagem de um casal em posição de dança, dessa dança. Isto nos indica que a força de associação dessa palavra é verdadeiramente notável, porque bem sabemos que o tango não pode ser apenas isso.
Do mesmo modo em que a neve pode se manifestar numa grande diversidade de situações e que as tonalidades desse branco podem ser incrivelmente variadas, o tango, como música, como dança, nos apresenta um mundo de possibilidades que vão muito além das nossas primeiras e poderosas associações involuntárias.
Possivelmente, quando se pensa num nome próprio vinculado à palavra tango, Piazzolla seja o primeiro do que depois poderia ser uma longa lista de nomes ilustres. E, ironicamente, como durante vida de Ástor a crítica insistia em dizer que o que ele fazia não era tango, ele dizia que era ‘música de Buenos Aires’. Se não for Piazzolla o primeiro nome próprio a vir à mente, então possivelmente seja Gardel. E nessa plêiade de homens e mulheres que viveram por e para o tango, não é por acaso que estes dois nomes surgem em primeiro lugar em praticamente qualquer canto do mundo. Poderíamos dizer que Gardel foi o emblema do tango primeira metade do século XX, e Piazzolla da segunda. Com Piazzolla, temos o tango na sala de concertos, tocado por grupos profissionais, solistas e orquestras. Mas as origens do tango estavam muito longe desses holofotes, eram humildes e sem pretensões. Havia surgido nos cabarés das cidades portuárias, com uma incrível mistura social das classes baixas, imigrantes e população local que na sua maioria era descendente de indígenas e escravos africanos. Por isso essa música contém em si uma grande variedade de influências, como o candombe uruguaio, o candombe portenho, a habanera (oriunda de Cuba), o tango andaluz, a mazurca, a polca, a valsa, etc. Esta fusão foi um processo de décadas que se afiançou como um gênero musical de identidade própria na última década do século XIX.
Deveríamos talvez começar pela definição e a origem da palavra, mas a verdade é que ainda hoje há controvérsias e centos de páginas escritas sobre a etimologia e significados, e apenas um comentário sobre isto já excederia os limites desta apresentação, portanto, deixemos falar de maneira um dos grandes poetas do tango, o senhor Enrique Santos Discépolo, que o definia assim: el tango es un pensamiento triste que se baila.
Seguindo aquela ideia inicial segundo a qual uma palavra nos suscita alguns conceitos predefinidos de maneira quase instantânea, poderíamos contribuir com ela no que diz respeito à temática geral do tango. É claro que nas letras e poesias do tango, se aborda um grande número de temas, mas como conceito geral, temos a impressão de que o tango trata do trágico. Não das grandes tragédias à maneira dos gregos ou Shakespeare, não! O tango fala dessas humildes enormes tragédias pessoais, daquele sujeito cinza e sem nome, sem qualidades especiais nem condições de herói, pelo contrário, possivelmente de moral duvidosa e vida escura, que às vezes tem pequenas alegrias numa carreira de cavalos ou num lance amoroso, mas que apenas alcançam para esboçar um sorriso irônico ante tanta dor cotidiana, entre espessas fumaças e intermináveis bebidas, que tentam ofuscar a lembrança da mulher amada, que morre demasiado cedo, ou que nunca corresponderá a esse amor. Quiçá estes seres confundem quase sempre desejo com amor, mas não o sabem, é o poeta quem tem que falar por eles e transformar essas coitas de um homem anônimo e escuro, num espelho para a alma de todos os homens.
No programa de hoje, escutaremos uma ampla variedade de peças que pertencem às diferentes influências estilísticas que foram conformando esse universo tão rico e variado.
Dos escuros e decadentes prostíbulos, portos e cárceres do Rio de la Plata aos salões nobres de Buenos Aires, Paris, Tokyo e New York, o tango representa uma das ascensões mais fulgurantes da história, que foi, é e será capaz de encantar às pessoas de todos os cantos do mundo